domingo, 27 de maio de 2012

O CANTO DO MAGNIFICAT


Murah Rannier Peixoto Vaz
O belíssimo canto do Magnificat, conservado no evangelho de Lucas, traz, envolto em sua singeleza, uma radicalidade profética com conteúdo libertador e político. É quase um eco revolucionário e subversivo de solidariedade humana. Um Deus que tem opção pelos Anawin, os pobres do Senhor, aqueles que se põe em estado de total dependência à Deus. Com isso, Maria mostra a intervenção libertadora de Deus que age de modo diverso dos homens e privilegia os pobres (Anawin) e rebaixa os ricos, orgulhosos e soberbos. Porém é preciso tomar cuidado com as limitações que algumas alas teológicas propõem como exegese desse texto.

Vamos fazer algumas abordagens sobre o Magnificat:
EXEGÉTICO-HISTÓRICO – O hino possui uma releitura da história sob um viés sapiencial que leva a enxergar os critérios da misteriosa intervenção divina que escolhe os pequenos, os menores, aqueles que são desprezíveis e os elege. Também há a retomada de textos correntes do AT, como o hino de Ana (1 Sm 2,1-11) que, ao compará-lo ao Magnificat, percebe-se que ambos são respostas de mulheres contempladas com a bênção divina por meio da concepção de um redentor (Goel) para Israel (no caso de Samuel, um redentor político-religioso e no caso de Jesus, o redentor messiânico). Da mesma forma, ambas mulheres humilhadas nas quais a potência de Deus foi exaltada.


Todavia, também há uma retomada dos trechos de alguns salmos, como os salmos 103, 1 e 34, 2-3. Isso ocorre sempre em momentos em que Israel é oprimido, ou alguém que, como Ana, sofre por uma humilhação ou injustiça e Deus se levanta a favor daqueles que lhe são fiéis. Sobre isso, Boff (2006, p. 329) diz o seguinte: “O Magnificat vibra todo de ressonâncias do Antigo Testamento. Para cada versículo do hino marial-lucano podem-se encontrar cachos de referências bíblicas. E é normal pois para todo judeu piedoso a Escritura é o livro da vida. Esse cântico mostra Maria como uma mulher impregnada da fé dos pais, que era, de resto, uma fé fortemente messiânico-libertadora”. No Magnificat, Maria relaciona sua maternidade messiânica com as promessas antigas e proclama a realização das promessas de Deus a Seu povo, fazendo a síntese de toda a história da salvação.


É impossível falar de Magnificat sem fazer sua leitura à luz do Êxodo e da Páscoa. Boff (2006, p. 326) apresenta um quadro da elaboração do canto do Magnificat. Para ele, do evento originário ocorrido mais ou menos no ano 7 a.C. gerou-se uma tradição oral que era transmitida ali pelo ano 40 d.C. e que, por volta de 80 d. C. se firmou e consolidou com a elaboração do relato lucano do evangelho. Nesse período, a Igreja era perseguida ferrenhamente pelo Império Romano.


ESPIRITUAL – Já nos primeiro versículos o Magnificat surge já como uma explosão de júbilo. Segundo João Paulo II: “Esse cântico é a resposta da Virgem ao mistério da Anunciação: o anjo convidou-a a alegrar-se; agora Maria expressa o júbilo de seu espírito em Deus, seu salvador. Sua alegria nasce de ter experimentado pessoalmente o olhar benévolo que Deus dirigiu a ela, criatura pobre e sem influência na história” (Catequese de 6-XI-96).

Maria apresenta-se como aquela na qual Deus realizou grandes maravilhas. No decorrer do canto, Maria refere-se a si mesma por cinco vezes, todavia, em total submissão e sem qualquer narcisismo, “não canta suas proezas, mas as façanhas de Deus, realizadas nela” (BOFF, 2006, p. 337). Tudo em Maria é graça, é obra do Espírito: “É a presença do Espírito em Maria que a faz vibrar, sair de si e perder-se em Deus. Contudo, nesse transe o eu da Virgem permanece consciente de si” (BOFF, 2006, p. 337). É preciso ter clareza de que isso “Não é uma catarse nem entretenimento, mas um profundo reconhecimento de quem é Deus e do se está fazendo. É um momento de contrição. A verdadeira adoração parte de um coração rendido e absorto em Deus. Não há estrelismo humano, mas uma glorificação de Deus” (FILHO, 2012).
Em Maria, há outro ponto que toca muito a espiritualidade dos cristãos como um todo, do qual também é modelo. Trata-se de seu êxtase, como saída de si mesma, Maria não se fecha ensismesmada e egoisticamente em seu relacionamento com Deus, ela parte da relação de seu Eu e o TU de Deus para um olhar sobre o Eles. No Magnificat, Maria volta seu olhar sobre aqueles que sofrem, que precisam de ajuda. Inclusive é esse o contexto em que se encontra Maria naquele momento, ela foi até Isabel, não a passeio, mas para colocar-se a serviço de sua parenta. A vida daqueles que se relacionam com Deus não é fechada ao olhar daqueles que sofrem e, constantemente, nos interpelam, ao contrário, todos somos responsáveis pelo outro, porque responsabilizar-se é uma das características do amor.

ECLESIAL-ESCATOLÓGICO – A libertação que Deus realiza, ainda que seja já instaurada, ainda não se realizou plenamente, ou seja, essa libertação não se dá pura e simplesmente na história, aqui e agora. João Paulo II afirma que o Magnificat, “inspirado no Antigo Testamento e na espiritualidade da filha de Sião, supera os textos proféticos que estão em sua origem, revelando na ‘cheia de graça’ o início de uma intervenção divina que vai além das esperanças messiânicas de Israel: o mistério santo da Encarnação do Verbo” (Catequese de 6-XI-96). O messianismo observado no Magnificat vai além de um Reino terrestre, além de uma libertação terrena, ainda que não descarte os esforços para isso. Portanto, à exemplo do Reino que já está em nosso meio, mas ainda não em sua totalidade, a libertação total de todo o gênero humano só se dará na realidade celeste e divina, no Reino definitivo. Essa libertação geme em dores de parto, como diz S. Paulo, porém, a alegria que virá não se compara em relação ao que vivemos agora.
Partindo para o nível eclesiológico, Maria, ao cantar o Magnificat, faz eco a todo o novo Israel e, do mesmo modo, a Igreja ao longo da história faz ecoar a voz de Maria. De seus lábios emana a voz da Igreja reunida. Nela a Igreja se personifica, por “seu opus ontológico, moral e escatológico, como viram os Padres da Igreja e como relembrou o Vaticano II” (BOFF, 2006, p. 327). Entretanto, voltando à questão escatológica, o canto da Virgem comporta uma libertação que se dá em meio às tensões e as dolorosas contradições, mas sem deixar de lado a alegria e o louvor daquela que confiou em seu Deus. Aqui abre-se um parênteses para uma comparação com o livro do Apocalipse, onde, mesmo em meio “as dores do martírio, irrompem sempre os gritos de ‘aleluia’ por causa das promessas do Todo-Poderoso” (BOFF, 2006, p. 336).
SÓCIO-POLÍTICO – A libertação que Deus vem trazer para o povo e que é proclamada no hino do Magnificat vai bem além de uma libertação material, terrena e histórica, mas, como já visto, não a descarta, antes a pressupõe e clama por colaboradores, clama por aqueles que cooperem com a obra salvífica que já começa aqui e agora e depende da abertura e do sim de cada um que livremente assume sua vocação, o chamado de Deus, e se torna agente de transformação das estruturas de injustiça e pecado. Não se trata de uma revolução de classes, uma revolução aos moldes do marxismo utópico, pois, esse modelo, comprovadamente apenas trocou uma classe por outra. Trata-se de uma conversão dos corações, trata-se de operar uma dupla terapia, como será visto a seguir, que conscientize e cure ricos e pobres de seus deveres e direitos. Não é a toa que o documento Redemptoris Mater (37), afirma que o Magnificat é o manifesto do amor, da “opção preferencial de Deus pelos pobres”.
O QUE DIZ O MAGISTÉRIO?     
A POBREZA DE DEUS - O “ANAWIM” de Deus que vive a pobreza evangélica não vive em condições desumanas e nem deixa de lado a sua dignidade de pessoa, muito pelo contrário, ele combate a carência e a privação dos bens materiais e tudo aquilo que dificulta o seu desenvolvimento integral como pessoa e dos outros. O verdadeiro “ANAWIM” é aquele que se torna totalmente dependente de Deus e com sua própria vida aponta o mesmo caminho aos outros.
O Magnificat é o Hino destes cuja única riqueza é Deus. Nele Maria não exulta pela riqueza ou poder, mas, pelo contrário, por ser pequena, insignificante e humilde. Em suas bem aventuranças Jesus retoma o ensinamento do hino do Magnificat e apresenta o homem novo é um homem dependente de Deus, que se alegra e põe toda a sua confiança somente n’Ele. E apresenta um chamado à indivisibilidade: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”.
TANTO O POBRE QUANTO O RICO SÃO CHAMADOS À LIBERDADE - O documento apresenta o progresso e a opulência como “pobres riquezas”, assim como: prazer, dinheiro e poder, são apetites que crescem conforme aumentam os bens. O excesso da opulência é tão nocivo quanto o excesso de pobreza. Essa pobreza se dá porque tanto o indigente como o rico obcecado pela própria riqueza são homens mutilados e com uma visão limitada. O indigente por razões independentes da sua vontade e o rico com suas mãos cheias sem capacidade de nada receber. Ambos são impedidos da liberdade interior para a qual Deus chama todos os homens.
De tal modo, se faz necessária uma reforma do coração com dupla terapia: o pobre cumulado de bens é chamado a curar o seu coração ferido pela injustiça e o rico despedido de mãos vazias é chamado a um abandono de sua carga e de seus apegos, para que esteja aberto a receber de Deus e a se tornar dependente d’Ele, não colocando os bens acima de tudo.
Só o amor pode superar os limites humanos e reformar a ação do homem criando estruturas novas do bem comum. Portanto, se o egoísmo gera o pecado social, em contraposição, o Amor gera o bem comum e torna-se forma de superação e reforma interior do homem. Isto só ocorre porque o amor é radical na sua essência e por isso provoca uma transformação radical do homem promovendo a sua integração e o levando a verdadeira conversão que olha para além de seus interesses pessoais e muda pouco a pouco o próprio modo de pensar do homem.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A FOME NO MUNDO – Um desafio para todos: o desenvolvimento solidário. Pontifício Conselho Cor unum, São Paulo: Paulinas, 2003.

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2008.

BOFF, Clodovis. Mariologia Social – O significado da Virgem para a sociedade. São Paulo: Paulos, 2006.Catequese de João Paulo II (6-XI-96).

FILHO, Isaltino Gomes Coelho. Uma Análise dos Cânticos nos Evangelhos - O Magnificat e o Benedictus. IN: http://www.luz.eti.br/cr_analisedoscanticos.html, Visitado em 24 de maio de 2012.









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