MANIFESTO AME-GOIÂNIA CONTRA A DISCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO
Dra Ana Paula Vecchi
Nesta semana o noticiário comum
divulgou que o Conselho Federal de Medicina (CFM) enviará ao Senado um
parecer em que defende a liberação do aborto até a 12ª semana de gravidez. Segundo
consta, o parecer foi aprovado pela maioria dos conselheiros federais e
regionais de medicina, este órgão que representa 400 mil médicos brasileiros.
Bem, mas eu pergunto: representa a opinião da maioria dos médicos brasileiros?
Da maioria de nós que juramos “nunca causar dano ou mal a alguém”1 e
não administrar “nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda”1?
E literalmente juramos não dar “a nenhuma mulher uma substância abortiva”1?
Certamente que não fomos consultados, apenas representados.
Os motivos alegados foram o alto
índice de mortalidade e de internações de mulheres que fazem abortos
clandestinos. De acordo com o conselho "o abortamento é uma importante
causa de mortalidade materna no país, sendo evitável em 92% dos casos"2
e as complicações causadas pelo procedimento representam "a terceira causa
de ocupação dos leitos obstétricos no Brasil"2.
Vejamos o que consta nos Princípios e
Diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher 20113:
Segundo Laurenti (2002), em pesquisa realizada nas capitais brasileiras
e no Distrito Federal, analisando óbitos em mulheres de 10 a 49 anos (ou seja,
mulheres em idade fértil), as dez primeiras causas de morte encontradas foram
as seguintes, em ordem decrescente: acidente vascular cerebral, aids,
homicídios, câncer de mama, acidente de transporte, neoplasia de órgãos
digestivos, doença hipertensiva, doença isquêmica do coração, diabetes e câncer
de colo do útero.
A mortalidade associada ao ciclo gravídico-puerperal e ao aborto não
aparece entre as dez primeiras causas de óbito nessa faixa etária. No entanto,
a gravidade do problema é evidenciada quando se chama atenção para o fato de
que a gravidez é um evento relacionado à vivência da sexualidade, portanto não
é doença, e que, em 92% dos casos, as mortes maternas são evitáveis. (Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde da Mulher : Princípios e Diretrizes / Ministério da Saúde. 2011. Pag
26)
Nas capitais brasileiras, para o ano de 2001, a Razões de Mortalidade
Materna corrigida foi de 74,5 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos. As
principais causas da mortalidade materna são a hipertensão arterial, as
hemorragias, a infecção puerperal e o aborto, todas evitáveis (BRASIL, 2003).
((Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher : Princípios e Diretrizes /
Ministério da Saúde. 2011. Pag 27)
Deste dado já percebemos que o
problema é muito mais amplo, pois nossas mulheres estão morrendo muito mais por
uma assistência precária ao pré-natal e ao parto que às consequências das
praticas abortivas clandestinas.
Segundo a última Pesquisa Nacional de
Demografia e Saúde (PNDS) (BENFAM, 1996) aproximadamente 13% das mulheres que
tiveram filhos nos cinco anos que antecederam a pesquisa não haviam realizado
nenhuma consulta de pré-natal. E em 2002 essa razão era de 4,4 consultas de
pré-natal para cada parto3 (Tabnet SIA-Datasus e TabwinAIH-Datasus,
2003).
Apesar do aumento do número de consultas de pré-natal, a qualidade dessa
assistência é precária, o que pode ser atestado pela alta incidência de sífilis
congênita, estimada em 12 casos/1.000 nascidos vivos, no SUS (PN-DST/AIDS,
2002), pelo fato da hipertensão arterial ser a causa mais freqüente de morte
materna no Brasil, e também porque apenas 41,01% das gestantes inscritas no
Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN) receberam a 2.a dose
ou a dose de reforço ou a dose imunizante da vacina antitetânica, segundo o
sistema de informação do Programa (BRASIL, 2002). (Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde da Mulher : Princípios e Diretrizes / Ministério da Saúde. 2011. Pag
28)
Se o pré-natal ainda é precário o
atendimento a parturiente também encontra dificuldades.
Nesta mesma diretriz 3
encontramos que “o aborto realizado em condições inseguras figura entre as
principais causas de morte materna”, entretanto mais adiante os autores afirmam
que “O atendimento às mulheres em processo de abortamento, no SUS, apresenta
uma tendência de estabilização na última década, consequência possível do
aumento de mulheres usando métodos anticoncepcionais e da elevada prevalência
de laqueadura tubária”.
Segundo dados do SUS 43% das mulheres
interrompem o método contraceptivo após 12 meses do seu uso. É o próprio
Ministério da Saúde que aponta a falta de cobertura e orientação quanto aos
métodos contraceptivos:
Apesar de estar definido na NOAS-SUS 2001 que as ações do planejamento
familiar fazem parte da atenção básica e que estão entre as responsabilidades
mínimas da gestão municipal em relação à saúde da mulher, muitos municípios não
têm conseguido implantar e implementar estratégias adequadas de fornecimento de
anticoncepcionais para a população, de introdução do enfoque educativo e
aconselhamento visando à escolha livre e informada, assim como garantir o
acompanhamento das usuárias.
Identificam-se ainda problemas na produção, controle de qualidade,
aquisição e logística de distribuição dos insumos, manutenção da continuidade
da oferta de métodos anticoncepcionais e capacitação de gestores, de gerentes e
de profissionais de saúde. Isso tem resultado numa atenção precária e
excludente, ou até inexistente em algumas localidades, com maior prejuízo para
as mulheres oriundas das camadas mais pobres e das áreas rurais. (Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Mulher : Princípios e Diretrizes / Ministério da
Saúde. 2011. Pag 33)
Então nós vamos entendendo a
dificuldade em que vive o SUS no atendimento
à mulher na gestação, parto e prevenção da gravidez. Os médicos que
trabalham com saúde da mulher conhecem bem essa realidade! Faltam leitos para
os partos de alta complexidade. E eu fico a pensar: se o aborto for realmente
legalizado será um problema de ordem pública! Onde conseguiremos leitos para
essas mulheres, se as maternidades estão lotadas? A outra pergunta que faço é
de onde o SUS conseguirá verba para sustentar tantos abortos? Sim porque a
estimativa do governo em 2005 é de 1 milhão de abortos clandestinos por ano!
Não encontramos dados do Governo Federal
quanto ao seu gasto com contraceptivos, apenas uma referência no Datafolha
2007, estimando-o em 350 reais por mulher. Compare ao gasto de 350 a 450
dólares4 gastos pelo governo americano com cada aborto, é bem mais
que o dobro! É consenso que os gastos
com prevenção são menores do que os de recuperação.5
Então essas medidas não justificam
uma economia e nem mesmo em solução para as falhas no planejamento familiar e
nem para diminuição da mortalidade materna. Países com uma realidade semelhante
a nossa a legalização do aborto não mostrou diminuição de sua prática
clandestina. Segundo KUNII, na Índia, onde o aborto é legalizado desde 1971,
estima-se que dos cerca de 7 milhões de abortos anuais, somente 10% sejam
realizados legalmente. Apesar da legalização, o aborto ainda é responsável por
12% das mortes maternas4.
Vejamos agora uma “justificativa”
utilizada por muitos: a legalização do aborto acabaria por diminuir sua
prática. Parece que também não é um argumento sustentável. Analisemos as
economias em que a pratica do aborto é legalizada. Nos Estados Unidos, quando o
aborto foi legalizado, em 1970, praticaram-se 200.000 abortos no país6.
Em 1971 este número dobrou para 400.000 e hoje cerca de 1,2 milhões de mulheres
por ano abortam nos EUA. Quatro décadas depois da histórica e polêmica decisão
da Suprema Corte que descriminalizou o aborto nos EUA, alguns estados
aprovaram, desde 2010, cerca de 130 leis para restringir o acesso das mulheres
a esse procedimento. 7 Mais da metade da população desse país, hoje,
não aprovam o aborto indiscriminadamente. (Datafolha 2013).
Na França a situação não é diferente.
Em 21 de dezembro de 1974, a lei "Veil" sobre a interrupção
voluntária da gravidez (IVG – Interruption Volontaire de la Grossesse) foi adotada
pelo Parlamento Francês. Seu intuito primordial era de diminuir o número de
abortos, sobretudo os clandestinos, que colocavam em risco a vida de mulheres
(mais de 200.000 por ano). Entretanto, trinta anos mais tarde, o número
continua o mesmo: um aborto para cada três nascimentos. Na Europa, os países em
que o número de abortos diminuiu foram aqueles em que a esterilização foi
promovida.8
Há um outro ponto, ainda, a discutir:
as razões políticas internacionais que visam um controle da natalidade em
países subdesenvolvidos.
Em torno de 1960, os países ricos,
especialmente os Estados Unidos, que já tinham os países pobres sob sua dependência,
passaram a pressionar governos do Terceiro Mundo para adotar uma política de
população, inspirados nas idéias de Malthus9. Consideravam haver nos
países ricos uma estabilidade no crescimento populacional e nos pobres uma
explosão populacional, atribuindo a ela a responsabilidade pela fome, pela
pobreza, pela degradação do meio ambiente e, sendo assim, a redução do
crescimento populacional deveria ser a principal prioridade para os planos de
desenvolvimento (SOF, 1994). Uma
vez dependente do capital internacional, o Brasil se rendeu às entidades
americanas consideradas de planejamento familiar, apesar da resistência de
militares, da Igreja e do próprio governo, que justificavam a importância de
uma grande população, tanto do ponto de vista estratégico como econômico10.
Em 1965, no contexto de uma grave crise econômica e política, foi criada a
BEMFAM (Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil). Financiada por
entidades internacionais e de interesses nitidamente controlistas facilitou o
acesso das mulheres aos métodos contraceptivos, principalmente à pílula,
através da distribuição gratuita, sem garantia de acompanhamento médico (RODRIGUES,
1990). Ela deslanchou em 1974,
quando, a partir de um memorando secreto do secretário de Estado Henry
Kissinger, o governo americano passou a despejar dólares e pressão diplomática
em campanhas de esterilização no Brasil. Homologado quase integralmente pelo presidente Gerald Ford, em 1975, o Relatório Kissinger defende o aborto
como método anticoncepcional e aponta o trabalho das mulheres fora de casa como
um incentivo a “ter menos filhos”. Elege os países nos quais os EUA “têm
interesses políticos e estratégicos”, o Brasil entre eles10.
Entendemos, então que a prática
abortiva não soluciona o problema da saúde da mulher e ainda levanta o problema
da natalidade e da influência dominadora, muitas vezes sutil, da cultura
estrangeira.
Voltando à proposta dos Conselheiros
do CFM, esses nossos representantes propõem a descriminalização do aborto em
três novas situações:
1.
gravidez por emprego não consentido de técnica de reprodução
assistida;
2.
anencefalia ou feto com graves e
incuráveis anomalias, atestado por dois médicos;
3.
por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico
constatar que a mulher não apresenta quando o médico constatar que a mulher não
apresenta condições psicológicas para a maternidade.
Consideramos a primeira situação um tanto quanto esdrúxula: uma mulher
ao ser fertilizada artificialmente sem o seu consentimento cabe processo penal
ao médico ou quem quer que tenha praticado! É caso de polícia! Será mesmo que
essa situação é frequente? De fato não existem estatísticas para tal.
A segunda situação é grave porque não bastasse a liberação do aborto do
anencéfalo no ano passado, agora estamos propondo o aborto de um feto por ele
“não ser normal” ou por ser um “doente incurável”! Será mesmo que um recém
nascido sadio é sinônimo de vida sem doença? Dentro desta filosofia deveríamos
eliminar todo adulto com doença incurável, eu diria que sobrariam poucos ou
nenhum, pois quem está livre da
hipertensão, do diabetes, das doenças autoimunes, das neoplasias, das infecções
crônicas?
Se o feto tem um defeito genético ou
não, não justifica sua eliminação! Porque terá pouco tempo de vida, também não.
Ora se um recém- nascido saudável adquirir uma infecção hospitalar grave,
também poderá morrer em poucas horas. Uma mãe com uma gravidez de um feto
normal poderá entrar em trabalho de parto prematuro e o feto falecer por
imaturidade pulmonar (doença das membranas hialinas) em poucos dias. Um feto
saudável não é garantia de sobrevida longa! Quem pode decidir quem vive, quem
morre? Só quem nunca trabalhou com familiares de crianças com problemas
congênitos pode dizer que é melhor para os pais o aborto, “evita sofrimento!”.
Esses profissionais não sabem como os pais vibram e comemoram cada conquista de
seus pequenos, mesmo que essas sejam apenas um bocejar. Estar com essas
crianças mesmo que por poucas horas após o nascimento permite a eles encerrar
um ciclo, vivenciar um luto! Em suas consciências fizeram tudo o que podiam,
“aproveitaram o máximo a vida de seu filho”! Já o aborto seria uma interrupção
deste processo. Uma lacuna muitas vezes preenchida com o vazio. Nós
profissionais da saúde deveríamos nos lembrar de todos esses aspectos
emocionais, espirituais e religiosos dessas famílias antes de nos atermos
somente no fatalismo técnico. Antes de indicar o aborto de um anencéfalo
lembrar que a vida em geração é muito mais do que simples órgãos! Eliminar um
anencéfalo ou um feto com anomalias graves é relembrar os absurdos realizados
pelo nazismo!
A
terceira situação representa a legalização indiscriminada do aborto, pois não
existe a necessidade de um atestado de condições psicológicas para a gestante.
Ou seja, é a aprovação simples e clara do aborto. E me desculpem, conselheiros,
não representa a vontade pura e exclusiva da mulher, posto todas argumentações
já colocadas anteriormente. Uma mulher de baixa escolaridade, com pouco apoio
no seu pre-natal, com orientação precária dos métodos contraceptivos, com
jornadas de trabalhos extra (pois ainda é a responsável pelo serviço doméstico),
com seu emprego ameaçado pela maternidade, num pais em que a família muitas
vezes é sustentada por ela, sem a garantia de apoio do pai de sua criança...
essa mulher é induzida a decidir!
E
as nossas meninas? Estão sendo educadas para preservarem o seu corpo, a sua
sexualidade? São esclarecidas o suficiente e possuem autonomia plena para
exigirem o uso de contraceptivos, sobretudo o preservativo, em suas relações?
Autonomia é liberdade esclarecida!
A
valorização da mulher e dos seus direitos não deverá ser exercida assim:
eliminando o problema, como a eliminar a mama para se evitar o câncer, mas
buscando soluções verdadeiras e profundas. É preciso melhorar antes a prevenção
para que a saúde da mulher e de seus filhos sejam preservadas!
BIBLIOGRAFIA:
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de Hipócrates. Disponível em:
http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Historia&esc=3
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Cíntia
Acayaba. Conselho de Medicina defende liberação do aborto até 12ª semana.
21/03/2013. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/03/medicos-defendem-liberacao-do-aborto-ate-12-semana-de-gestacao.html
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Brasil
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Programáticas Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da
Mulher : Princípios e Diretrizes / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à
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Programáticas Estratégicas. – 1. ed., 2. reimpr. Brasília : Editora do
Ministério da Saúde, 2011.
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Hugo
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5. João Carlos Navarro de Almeida Prado.
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Social ao Planejamento familiar. Disponível em : http://www.pge.ac.gov.br/site/arquivos/bibliotecavirtual/teses/IBAPtesesPDF/Educacaofundamentaldireitoamaternidade.pdf
6. Felipe Aquino. Número de abortos
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7. Estados limitam aborto nos EUA 40
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http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1218398-estados-limitam-aborto-nos-eua-40-anos-apos-liberacao.shtml.
22/01/2013-05h00
8. Celuy Roberta Hundzinski Damásio.
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da pobreza. Disponível em:
http://www.istoe.com.br/reportagens/21681_FILHOS+DA+POBREZA)
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