
Raniero Cantalamessa, no capítulo 19 de seu livro , “O canto do Espírito”, aborda a questão do discernimento do Espírito, aprofunda nos âmbitos em que ele se dá e discorre sobre a condução ou o guiar que o Espírito Santo faz na vida daqueles que o ouvem e se abrem a ele.
Cantalamessa inicia seu capítulo falando de duas frentes de batalha: uma contra o mal e aquela da decisão e da escolha. Neste ponto o autor faz uma alusão à liberdade humana e sua capacidade de escolhas e decisões. Unido a essas capacidades está a angústia de escolher, pois ela sempre implica uma renúncia.
O pregador da casa pontifícia afirma que mesmo o homem de fé, ao conhecer o projeto de Deus para a humanidade e tomar a decisão de conformar sua vontade à Deus, precisa continuamente “discernir o que é conforme este projeto e o que lhe é contrário, ou não tão conforme” (CANTALAMESSA, R. p.331).
Nota-se, que o frade capuchinho vai delineando como primeiro âmbito da ação do Espírito Santo a questão da consciência humana e o seu sacrário interior onde a voz do Espírito fala ao homem e o auxilia a discernir entre o bem e o mal. Ou seja, a seguir em busca do bem e a afastar-se do mal.
Esse guiar do Espírito encontra-se claro na Escritura e na Tradição cristã. Apresentado várias vezes como “nuvem luminosa” ou “coluna de fogo” que vai a frente do povo e o guia para a terra prometida e porque não, para Cristo? Assim são as tipologias de Paulo, que afirma que do mesmo modo como no deserto o povo de Deus era conduzido pela nuvem, que é o próprio Espírito, e que também conduziu a vida de Jesus, agora o Espírito guia a Igreja e a conduz.
De tal maneira, o Espírito Santo tem diversas ações: ele manda, inspira, dirige, impede e impele. Isso faz com que o Paulo chegue a dizer que é “prisioneiro” do Espírito (At 20, 22).
A consciência é, portanto, onde se dá um dos papéis de direção do Paráclito, mas como isso se dá? Cantalamessa diz que existe uma íntima relação da consciência com o Espírito e que isso não se dá apenas para os católicos, mas para todos, estendendo-se além das linhas da Igreja, como que uma lei interior gravada nos corações humanos. Essa lei é diferente e inferior à da graça, mas em sintonia com ela, e para aqueles que crêem em Cristo ocorre uma dinamização que faz do Espírito Santo o “mestre interior”, ou “o grande didáscalos, ou seja, o mestre da Igreja”[1] que produz interiormente no homem as “boas inspirações” ou “iluminações interiores” que todos alguma vez na vida tiveram e que o fizeram praticar o bem e evitar o mal.
Quanto ao segundo âmbito de ação do Espírito, Cantalamessa afirma que ela se dá na comunidade, ou melhor dizendo, na Igreja, que é onde o testemunho interior e pessoal pode se conjugar com o testemunho exterior e público. Pois o Espírito não fala apenas ao indivíduo, mas também na comunidade e por ela, aqui está a importância do magistério apostólico.
Assim, há dois testemunhos que despertam a fé: o dos Apóstolos e o do Espírito, o daqueles que pregam e o daquele que abre os corações e as mentes para ouvirem e acolherem. Sem esses dois atuando conjuntamente pode haver o jurisdicismo, o autoritarismo, o subjetivismo, o fanatismo, menos a ação evangélica por meio do Espírito.
Isso acarreta o risco de um reducionismo subjetivista e individualista incontrolável que abre margem para inúmeras divisões, onde cada um pensa deter a verdade e para evitar contestações rejeitam toda e qualquer testemunho externo eclesial, para valer apenas o testemunho interno e pessoal, fazendo da Bíblia seu único fundamento ao qual interpretam à revelia, por critérios próprios.
Outros riscos: a tendência de diminuir o Espírito e fazer dele um espírito humano, sem o “E” maiúsculo que lhe é próprio, o que leva ao racionalismo; a absolutização do testemunho externo e público, de modo a ignorar o testemunho individual, clericalizando excessivamente a Igreja e marginalizando o laicato.
O que se deve levar em conta é a necessidade de harmonização entre o que diz o Espírito como testemunho interno e a escuta do que diz o Espírito à Igreja em seu conjunto, e que através dela transmitido aos indivíduos. O que leva à essa harmonização é o mesmo Espírito, é ele quem promove o discernimento entre o que é de Deus e o que é do humano. Paulo fala de um carisma do discernimento dos espíritos, tal carisma leva à distinção entre o que é revelado, ou seja, vem do Espírito de Cristo, e o que provêm de outros espíritos, humanos ou diabólicos. Este ponto é essencial para discernir a verdadeira das falsas doutrinas, a ortodoxia da heresia.
Como diz o Concílio Vaticano II, é preciso saber “ler os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho”. Mas como podemos perceber, esse ler os sinais e discernir se dá em dois terrenos, o eclesial e o pessoal. Daí a importância do “Aggiornamento” da Igreja, resgatando a colegiabilidade dos Bispos que os levam a confrontarem-se apresentando pontos de vista em conflito e após discutirem, tomarem uma decisão. Como se deu no chamado Concílio de Jerusalem, onde foi proclamada a fórmula: “Pois decidimos, o Espírito Santo e nós...” (At 15, 28).
Quanto ao terreno do discernimento pessoal, Cantalamessa afirma que está a unido a esse discernimento o “dom de conselho” que ajuda o outro a avaliar e a orientar as opções à luz da fé. Todavia, Paulo fala de alguns critérios de discernimento. Segundo o Apóstolo, são os frutos que revelarão se o que se faz são “frutos da carne” ou “frutos do Espírito”. Santo Inácio de Loyola, por sua vez, diz que para uma reta escolha se deve considerar as próprias disposições interiores que se escondem por detrás da opção.
A obra do discernimento é do Espírito, portanto, não se pode acentuar os aspectos psicológicos esquecendo-se daquilo que é anterior e que exerce a primazia no discernir. O Espírito Santo, ao entrar na vida de uma pessoa, “manifesta-se como a própria vontade de Deus para a pessoa em quem se encontra”[2].
O Espírito Santo não age de modo admirável e miraculoso, diz Cantalamessa, mas por meio da palavra da Sagrada Escritura. Há, porém, que se cuidar para não instrumentalizá-la, e nem fazer de seu uso algo mecânico, sendo também temeroso abri-la ao acaso como meio de consulta. Ainda que seja licito e que por diversas vezes na história da Igreja Deus tenha se revelado e falado dessa forma, não se pode fazer dela um hábito, pois corre-se o risco de interpretações subjetivistas.
Ao se abandonar e se deixar conduzir pela guisa do Espírito, somos levados por aquele que guia, mas não é guiado, dirige, mas não é dirigido, conduz, mas não é conduzido, pois age e sopra quando, onde e da forma como lhe apraz. Aqui deve se tomar o cuidado para não se tomar decisões e atribuí-las ao Espírito, como que o sugestionando, dando-lhe conselhos, ao invés de recebê-los.
Como que uma lâmpada purificadora, que brilha sob a inteligência humana e a ilumina e a conduz, como um farol conduz e guia os barcos na escuridão, até o porto seguro a fim de evitar-lhes o naufrágio nos recifes e corais. Compreender e deixar-se levar por esse soprar do Espírito que fala, ensina e instrui é alcançar a harmonia e deixar-se filialmente e obedientemente nas mãos de Deus para que na vida tudo seja feito pelo Espírito.
BIBLIOGRAFIA:
Cantalamessa, R. Canto do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1998. Capítulo 19, p.331-347.
[1] Cf. Agostinho, apud in: CANTALAMESSA, R. Canto do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1998.
[2] Cf. Guilherme de S. Thierry. O espelho da fé, 61 (SCh 301, p. 128). Apud in: Cantalamessa, R. Canto do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1998.